segunda-feira, julho 14, 2014

histórias de/e com alma

crónicas de um bibliotecário-ambulante
histórias de/e com alma
Sentado ao volante da Bibliomóvel (Biblioteca Itinerante) de Proença-a-Nova, já fui espectador protagonista e ouvinte de algumas histórias que escutei e vivenciei ao longo destes 8 anos de terras, estradas e gentes.
Cruzei-me com passados e com presentes, nem sempre luminosos mas sempre carregados de existências e vivências. Alguns deixaram marca!
M.E, mulher vivida e “batida” nos quatro cantos deste mundo, entre um copo de vinho, um cigarro na mão, um livro no colo e uma escalfeta nos pés, viveu (sobreviveu…) tendo como ligação quase exclusiva ao resto do mundo a Bibliomóvel, eu, uma irmã distante e moribunda e um amigo colorido que a deixou.
M.C, advogado, que a luxuria do Bairro Alto, as luzes do Casino, o álcool fizeram que com retornasse às ruas e campos que o viram nascer, para sarar feridas de anos e anos de consumo frenético e para tratar da sua mãe (eterna resistente!) e de um pequeno fato de cabras que passeava, levando sempre como cajado um livro. Numa ocasião, encontrei-o debaixo de uma oliveira, à sombra, “vigiando” com O Processo de Kafka.
M.E sobrevivia só, demasiado só. Desenraizada da terra que a viu nascer, à qual regressou depois de um longo périplo profissional como “secretária de direcção”, encontrou pouco mais que duas vizinhas que não a entendiam, mas que a tentavam ajudar e quase toda uma aldeia que não a entendiam, a catalogavam, recriminavam ou ignoravam.
M.C era um dos poucos que se abeirava da Bibliomóvel, usava avidamente os nossos recursos livreiros e jornaleiros, e com ele eu iniciava longas viagens que iam desde o Seminário, às “mulatas”,ao grogue e aos trilhos de Cabo Verde, mas que invariavelmente acabavam no Terreiro do Paço, Palácio de Belém, São Bento, Faculdade de Letras e, claro, o eixo Cais do Sodré/Bairro Alto.
M.E, todas a 2ª feiras, ligava, para saber como tinha corrido o fim-de-semana, para saber se havia novidades na biblioteca, saber (mesmo já sabendo de cor os nossos horários) se aparecíamos na 6ª feira dessa semana, dizer que tinha gostado de ler aquele livro, dizer que tinha detestado o outro, mas que o tinha lido na mesma. Dizer Olá e Adeus!
M.C raramente tinha um sorriso no rosto. Das poucas vezes que o observei, foi quando as nossas viagens de memórias alfacinhas aterraram na… Maria Filomena Mónica! Uma paixão? Um enamoramento?
M.E não cozinhava, não era dona de casa, apenas e só vivia (sobrevivia) sentada no sofá, com uma vista deslumbrante, deitada na cama com os seus companheiros inseparáveis. Na casa com a melhor vista da aldeia mas com graves problemas estruturais, que transformavam os longos invernos em penas presidiárias num espaço frio e húmido.
M.C tinha uma biblioteca em casa da qual usufruí, estabelecendo uma “troca comercial” rica e produtiva. Era uma pessoa culta, complexa, que tecia comentários esclarecidos sobre quase tudo, da realidade politica, social, económica regional, nacional e internacional.
M.E era mulher sem tabus, gostava de chocar, gostava de confrontar com a sua fina (por vezes grosseira) ironia as vizinhas, com detalhes íntimos da sua existência e experiências que chocavam de frente e com grande estrondo com a pacatez reinante. E como ela se divertia!!!
M.C bebia sempre um café cheio(frio),com pouco açúcar, quando o café estava aberto! Esperava por mim na esplanada (quando o café estava fechado), muitas vezes ao frio e à chuva com a companhia do seu fiel amigo de quatro patas que o venerava e respeitava. Acordava e almoçava sempre tarde. Muitas vezes, ainda em jejum, entrava, sentava-se dentro da Bibliomóvel e falava, conversava, escutava e, quantas vezes, passando largamente a hora de partida, saímos cada um para o seu destino. Ele, para fazer o almoço, cuidar da sua mãe e sair com as cabras.
M.E viveu e morreu! Nem na morte deixou de marcar e de chocar. Algum tempo antes de um desfecho, talvez não inesperado, tinha lido que havia a possibilidade de doar o corpo à ciência. Pediu-me que encontrasse os contactos necessários e, claro, fez todas as diligências necessárias.
Nem na morte, Sr. Nuno nem na morte! Aquela E. tinha mesmo que chocar e serdiferente!!!” Confidenciou-me uma das vizinhas.
M.C padecia de uma grave doença respiratória que exigia internamento, mas voltava sempre! Ultimamente, mais magro e debilitado, mas sempre com vontade de falar e viajar pelo passado. Emprestei-lhe os últimos livros sem saber. Não me despedi dele!
M.E andava mais cansada, mais desanimada, mais aérea, mais sob o efeito de uma alimentação, quase exclusivamente feita à base de sumo de uva(se é que tinha algum!!) fermentado, de fraca qualidade e barato. Um primeiro aviso! Seguiu-se um período de acalmia e de até uma quase miraculosa recuperação. Um renovar de laços com as vizinhas mais próximas que começaram a deixar a porta aberta a uma preocupação maternal, à qual M.E respondeu com uma colaboração, bastante profissional em assuntos burocráticos.
Uma recaída, uma queda feia, um partir inesperado. Não me despedi dela!
As andanças da Bibliomóvel de Proença-a-Nova também são isto. Isto e sempre algo mais…


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